A seguir, nosso blog reproduz na íntegra a entrevista das assessoras técnicas do Cfêmea, Iáris Cortês e Analba Brazão, sobre os avanços e as deficiências dos três anos da Lei Maria da Penha .
Acompanhe a entrevista na íntegra:
Fêmea - O processo de elaboração da Lei Maria da Penha (LMP) contou com o protagonismo dos movimentos sociais. Como você analisa a incidência dos movimentos de mulheres nesse processo legislativo?
Iáris Cortês - Não restam dúvidas que os movimentos de mulheres foram os grandes protagonistas em todo o processo de elaboração de leis que ampliaram os direitos das mulheres, principalmente após a Constituinte. Com relação ao processo de elaboração e aprovação da Lei que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher - Lei 11.340/2006, este processo teve inicio ainda na década de 70, quando o movimento feminista dava seus primeiros passos.
Analba Brazão - O movimento feminista tem incidido bastante, nestas três últimas décadas, no processo legislativo para ampliação dos direitos. Isso se deu fortemente nas áreas de saúde e na área da violência contra as mulheres. A última grande mobilização foi em torno da construção e aprovação da LMP. Agora estamos na luta intensa para que a lei seja implementada da melhor forma possível, enfrentando de todos os lados a fúria patriarcal.
Fêmea - A Lei completa três anos, em agosto deste ano. Qual a sua análise sobre a aplicabilidade desta lei pelos Poderes Executivo e Judiciário?
Iáris - Reconhecemos os avanços, o empenho do Executivo, por meio da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) e de alguns representantes do Judiciário, porém ainda está muito longe da Lei ser aplicada em todos os municípios brasileiros. Além do mais, onde existe a aplicação, nem sempre está sendo feita aos moldes da Lei. Tem o sério problema dos cortes ou contingenciamento de recursos na Lei Orçamentária Anual. Este ano, por exemplo, vimos uma ameaça de corte de 60% dos recursos das políticas públicas para as mulheres e não sei quanto deste montante estaria destinado ao programa de combate à violência doméstica. São poucas delegacias e casas abrigo. Já no Judiciário, ainda encontramos juízes que levantam a questão superada da inconstitucionalidade da Lei. Poucos Juizados foram criados, em comparação ao número de municípios que existem em nosso país. As equipes multidisciplinares não são suficientes nem os serviços de atendimento.
Analba - Sabemos que para a aplicabilidade da lei é necessário que o governo federal e os locais atuem de forma articulada, provendo os mecanismos que possibilitam a sua implementação. Requer a criação dos juizados especializados nos estados, para julgamento dos casos de violência domestica, fortalecimento de uma rede integrada de proteção as vitimas e capacitação de seus funcionários. Tudo isto depende de vontade política e de uma justa distribuição orçamentária. Além de sofrerem violência doméstica em suas casas, as mulheres se deparam com a violência institucional e a negligência. No RN, o Juizado foi criado no dia 8 de março, como uma das realizações da governadora “mulher”, mas não foi divulgada a forma como o Estado viabilizaria sua implementação, já que a DEAM da cidade encontrava-se em calamidade. Outro fator que ocorre com os juizados é a não absorção das demandas. No Rio de Janeiro são quase 18 mil processos encaminhados apenas em 2008, nos 4 juizados existentes. As medidas protetivas também não são aplicadas em tempo hábil. Em SC são 6 juizados, mas é o único estado da federação que não possui Defensoria Pública. O balanço nacional da LMP, ação realizada pela AMB, mostra a ineficácia da implementação da Lei e indica que os mecanismos criados nos estados foram impulsionados pela luta do movimento feminista.
Fêmea - Existe um ponto polêmico da LMP que recai sobre o prosseguimento ou não do processo quando a mulher desiste da denúncia contra o agressor. Qual a sua opinião sobre este ponto?
Iáris - Existem vários pontos polêmicos e ainda vão persistir por muitos anos, pois o machismo velado que existe no Brasil faz com que muitas pessoas achem esta Lei desnecessária. Tentam não ver a violência que as mulheres sofrem em seus lares nem a necessidade de se combater esta violência de forma radical como exprime a LMP. A desistência da denuncia contra o agressor é um ponto nevrálgico, pois pode inviabilizar o alcance total da Lei. Por isso é importante acompanhar o recurso que está no Superior Tribunal de Justiça (STJ) que irá decidir se a mulher pode ou não desistir da denúncia nos crimes de lesão corporal leve ou culposa - agressão física. Se as mulheres puderem desistir, para que servirá a Lei? Seria a volta da banalização da violência doméstica contra as mulheres onde era afirmado que “um tapinha não dói”. O Estado tem que encarar e assumir a responsabilidade de punir os culpados. Dizer que a “autonomia das mulheres” é podada é não conhecer a realidade brasileira, onde cerca de 90% das pessoas não têm acesso à internet. A maioria das mulheres é dependente financeira e emocionalmente, além de submissas a seus pais, maridos ou companheiros. Ainda há a vergonha, o medo da vingança, a pressão da família.
Analba - Em nossa experiência, observamos que muitas mulheres se viam obrigadas a retirar a queixa pelos próprios agressores. A pressão também vinha da família, da dependência econômica, a falta de apoio e principalmente o descrédito na justiça. Exigir a representação, para dar prosseguimento ao processo penal é não reconhecer as relações hierárquicas estabelecidas entre os homens e mulheres. É querer voltar a “conciliação” em nome de uma família “harmoniosa” e fechar os olhos para o ciclo de violência estabelecido nesta relação afetivo-conjugal. Não se pode admitir que, quando a vitima é mulher e a agressão foi cometida no ambiente familiar, possa ser considerado como uma agressão menor, desconsiderando as outras marcas que vão além daquelas que podem ser vista no corpo. Com a LMP, a agressão, mesmo as lesões corporais de natureza “leve”, não podem mais ser consideradas como ação privada e que depende da “vontade” da mulher para continuação do processo. Exigir isso é mais um encargo para as mulheres.
Fêmea - Já existem proposições no Congresso para alteração da Lei. Devemos ficar alertas para riscos de retrocessos?
Iáris - Sim. Muitas vezes as alterações prejudiciais estão nas entrelinhas, são despercebidas numa primeira leitura. A experiência que tenho nesses mais de vinte anos é que o movimento de mulheres, aliás, todos os movimentos sociais devem sempre ficar de olhos muito aberto no que acontece no Congresso Nacional.
Analba - Infelizmente, desde a sua aprovação, muitos têm tratado a lei da mesma forma que tratam as mulheres vitimas, com desconfiança. São várias as dificuldades que estamos enfrentando e o “alerta feminista” tem que ser constante, por que há real risco de retrocessos. Alem de ter vários projetos de alteração na Lei, temos que ficar bastante atentas para o que propõe a Reforma do Código de Processo Penal (PLS 156/2009).. Conseguimos na LMP, retirar a leitura de que a violência contra as mulheres é crime de menor potencial ofensivo, conseguimos colocar esta violência como um crime a ser punido de verdade. Temos que estar atentas para que esta grande conquista na luta pelo fim da violência doméstica não seja confiscada. Por isso faremos, em agosto, mobilização em defesa da Lei. Acompanharemos a discussão no Congresso, no STJ e no Supremo Tribunal Federal, que julgará a Ação Declaratória de Constitucionalidade da LMP e, com certeza, irá confirmar que a Lei não fere nossa Constituição.
Acompanhe a entrevista na íntegra:
Fêmea - O processo de elaboração da Lei Maria da Penha (LMP) contou com o protagonismo dos movimentos sociais. Como você analisa a incidência dos movimentos de mulheres nesse processo legislativo?
Iáris Cortês - Não restam dúvidas que os movimentos de mulheres foram os grandes protagonistas em todo o processo de elaboração de leis que ampliaram os direitos das mulheres, principalmente após a Constituinte. Com relação ao processo de elaboração e aprovação da Lei que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher - Lei 11.340/2006, este processo teve inicio ainda na década de 70, quando o movimento feminista dava seus primeiros passos.
Analba Brazão - O movimento feminista tem incidido bastante, nestas três últimas décadas, no processo legislativo para ampliação dos direitos. Isso se deu fortemente nas áreas de saúde e na área da violência contra as mulheres. A última grande mobilização foi em torno da construção e aprovação da LMP. Agora estamos na luta intensa para que a lei seja implementada da melhor forma possível, enfrentando de todos os lados a fúria patriarcal.
Fêmea - A Lei completa três anos, em agosto deste ano. Qual a sua análise sobre a aplicabilidade desta lei pelos Poderes Executivo e Judiciário?
Iáris - Reconhecemos os avanços, o empenho do Executivo, por meio da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) e de alguns representantes do Judiciário, porém ainda está muito longe da Lei ser aplicada em todos os municípios brasileiros. Além do mais, onde existe a aplicação, nem sempre está sendo feita aos moldes da Lei. Tem o sério problema dos cortes ou contingenciamento de recursos na Lei Orçamentária Anual. Este ano, por exemplo, vimos uma ameaça de corte de 60% dos recursos das políticas públicas para as mulheres e não sei quanto deste montante estaria destinado ao programa de combate à violência doméstica. São poucas delegacias e casas abrigo. Já no Judiciário, ainda encontramos juízes que levantam a questão superada da inconstitucionalidade da Lei. Poucos Juizados foram criados, em comparação ao número de municípios que existem em nosso país. As equipes multidisciplinares não são suficientes nem os serviços de atendimento.
Analba - Sabemos que para a aplicabilidade da lei é necessário que o governo federal e os locais atuem de forma articulada, provendo os mecanismos que possibilitam a sua implementação. Requer a criação dos juizados especializados nos estados, para julgamento dos casos de violência domestica, fortalecimento de uma rede integrada de proteção as vitimas e capacitação de seus funcionários. Tudo isto depende de vontade política e de uma justa distribuição orçamentária. Além de sofrerem violência doméstica em suas casas, as mulheres se deparam com a violência institucional e a negligência. No RN, o Juizado foi criado no dia 8 de março, como uma das realizações da governadora “mulher”, mas não foi divulgada a forma como o Estado viabilizaria sua implementação, já que a DEAM da cidade encontrava-se em calamidade. Outro fator que ocorre com os juizados é a não absorção das demandas. No Rio de Janeiro são quase 18 mil processos encaminhados apenas em 2008, nos 4 juizados existentes. As medidas protetivas também não são aplicadas em tempo hábil. Em SC são 6 juizados, mas é o único estado da federação que não possui Defensoria Pública. O balanço nacional da LMP, ação realizada pela AMB, mostra a ineficácia da implementação da Lei e indica que os mecanismos criados nos estados foram impulsionados pela luta do movimento feminista.
Fêmea - Existe um ponto polêmico da LMP que recai sobre o prosseguimento ou não do processo quando a mulher desiste da denúncia contra o agressor. Qual a sua opinião sobre este ponto?
Iáris - Existem vários pontos polêmicos e ainda vão persistir por muitos anos, pois o machismo velado que existe no Brasil faz com que muitas pessoas achem esta Lei desnecessária. Tentam não ver a violência que as mulheres sofrem em seus lares nem a necessidade de se combater esta violência de forma radical como exprime a LMP. A desistência da denuncia contra o agressor é um ponto nevrálgico, pois pode inviabilizar o alcance total da Lei. Por isso é importante acompanhar o recurso que está no Superior Tribunal de Justiça (STJ) que irá decidir se a mulher pode ou não desistir da denúncia nos crimes de lesão corporal leve ou culposa - agressão física. Se as mulheres puderem desistir, para que servirá a Lei? Seria a volta da banalização da violência doméstica contra as mulheres onde era afirmado que “um tapinha não dói”. O Estado tem que encarar e assumir a responsabilidade de punir os culpados. Dizer que a “autonomia das mulheres” é podada é não conhecer a realidade brasileira, onde cerca de 90% das pessoas não têm acesso à internet. A maioria das mulheres é dependente financeira e emocionalmente, além de submissas a seus pais, maridos ou companheiros. Ainda há a vergonha, o medo da vingança, a pressão da família.
Analba - Em nossa experiência, observamos que muitas mulheres se viam obrigadas a retirar a queixa pelos próprios agressores. A pressão também vinha da família, da dependência econômica, a falta de apoio e principalmente o descrédito na justiça. Exigir a representação, para dar prosseguimento ao processo penal é não reconhecer as relações hierárquicas estabelecidas entre os homens e mulheres. É querer voltar a “conciliação” em nome de uma família “harmoniosa” e fechar os olhos para o ciclo de violência estabelecido nesta relação afetivo-conjugal. Não se pode admitir que, quando a vitima é mulher e a agressão foi cometida no ambiente familiar, possa ser considerado como uma agressão menor, desconsiderando as outras marcas que vão além daquelas que podem ser vista no corpo. Com a LMP, a agressão, mesmo as lesões corporais de natureza “leve”, não podem mais ser consideradas como ação privada e que depende da “vontade” da mulher para continuação do processo. Exigir isso é mais um encargo para as mulheres.
Fêmea - Já existem proposições no Congresso para alteração da Lei. Devemos ficar alertas para riscos de retrocessos?
Iáris - Sim. Muitas vezes as alterações prejudiciais estão nas entrelinhas, são despercebidas numa primeira leitura. A experiência que tenho nesses mais de vinte anos é que o movimento de mulheres, aliás, todos os movimentos sociais devem sempre ficar de olhos muito aberto no que acontece no Congresso Nacional.
Analba - Infelizmente, desde a sua aprovação, muitos têm tratado a lei da mesma forma que tratam as mulheres vitimas, com desconfiança. São várias as dificuldades que estamos enfrentando e o “alerta feminista” tem que ser constante, por que há real risco de retrocessos. Alem de ter vários projetos de alteração na Lei, temos que ficar bastante atentas para o que propõe a Reforma do Código de Processo Penal (PLS 156/2009).. Conseguimos na LMP, retirar a leitura de que a violência contra as mulheres é crime de menor potencial ofensivo, conseguimos colocar esta violência como um crime a ser punido de verdade. Temos que estar atentas para que esta grande conquista na luta pelo fim da violência doméstica não seja confiscada. Por isso faremos, em agosto, mobilização em defesa da Lei. Acompanharemos a discussão no Congresso, no STJ e no Supremo Tribunal Federal, que julgará a Ação Declaratória de Constitucionalidade da LMP e, com certeza, irá confirmar que a Lei não fere nossa Constituição.