quarta-feira, 14 de maio de 2008

O dia em que conheci o bicho-papão


por Cléria Bittar Bueno
Não, definitivamente não se trata de um conto de fadas para crianças; não é um livro para crianças, pelo menos na forma convencional. É um livro sobre um tema que atinge em cheio a dignidade do ser humano. É a história real de seu autor (ele prefere usar o pseudônimo de Ricardo Dabo), que em criança foi molestado sexualmente.
No momento em que o País todo se abala com as tristes histórias de vidas de crianças ceifadas por mãos impiedosas, relatos escabrosos aparecem e latejam em nossas mentes: que pensa e como age um molestador de crianças? Posso assegurar-lhes, caros leitores, que este livro é um libelo contra esta abominável prática que deixa seqüelas nas almas de muitos adultos sobreviventes do abuso, que se tornam seres sombrios, desconfiados, incrédulos diante de toda aproximação amorosa e desinteressada. O autor de "O dia em que conheci o bicho-papão" inicia seu relato expondo-nos todos os sintomas e mal-estares que torturam os que sofreram abuso sexual. Mais do que transtornos psicológicos, manias de perseguição, insônias, afastamento social, baixa auto-estima, sentimento constante de culpa e vergonha, problemas na esfera da sexualidade, percebemos que toda a dor do mundo está contida em sua narrativa. Esta em vários momentos me fizeram lembrar As dores do mundo, de Schoppenhauer (1788-1860): "Se é certo que um Deus fez este mundo, não queria eu ser esse Deus: as dores do mundo dilacerariam meu coração". A história, narrada em primeira pessoa, passa-se aqui em Franca, onde Ricardo nasceu e viveu até pouco tempo antes de mudar-se para Goiânia. Como epígrafe o livro traz duas frases: "Esquecer é permitir. Lembrar é combater".
Elas nos dizem tudo: as vítimas de abuso sexual não querem esquecer o passado, nem poderiam. Seria uma forma de negar-lhes o direito de questionar o porquê de tamanha barbaridade, de tamanha perversão, quando suas vidas ainda estavam se abrindo. Esquecer o passado seria a conivência com o abuso; há de lembrá-lo, dissecá-lo, para conhecer e combater esta monstruosidade.
Ler este livro é um exercício de voyeurismo, pois ficamos tão integrados às cenas que Dabo descreve que nos transportamos para lá, onde ocorrem os fatos. Todas as emoções, o pulsar de suas veias, seus poros latejantes, sua curiosidade infantil a respeito do sexo, tudo isto sentimos como se passasse conosco; assim como o asco, o estômago embrulhado, o mal-estar quando descreve a noite fatídica que seria, de certa forma, a protagonista de sua existência.
A estratégia do pedófilo é manter suas vítimas em sua 'posse', tal fossem um objeto inanimado. Falantes, gentis, 'carinhosos', preocupados, aproximam-se quase sempre oferecendo um universo colorido de possibilidades e de pequenas riquezas infantis: brinquedos, balas, gibis... E uma vez conquistada a confiança da criança, dão o bote definitivo. A memória registra e nunca mais se livra do ocorrido.
Serviço:
Título - O dia em que conheci o bicho-papão
Autor - Ricardo Dabo
Editora - Kelps
Preço - R$ 15