quarta-feira, 15 de setembro de 2010

O goleiro Bruno e a gravidez de Eliza: outro lado da história

MARGARETH ARILHA Pesquisadora do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp e membro da Comissão de Cidadania e Reprodução

Eliza Samudio e o goleiro Bruno Fernandes engravidaram. Sim, porque na verdade, Eliza não realizou uma fertilização invitro,com ajuda de um banco de esperma. O que aconteceu foram relações sexuais desprotegidas entre Eliza e Bruno. Ao menos uma, que terminou gerando uma gravidez. Talvez desejada por Eliza e inoportuna para Bruno. Pouco depois de saber da gestação, em 13 de outubro, conforme registro policial, Eliza procurou uma delegacia da mulher, no Rio de Janeiro, para relatar que teria sido ameaçada por Bruno e forçada a ingerir Cytotec. A Polícia diz que, na ocasião, o goleiro foi indiciado. Exame de corpo delito feito pelo IML revelou indicios de uso de medicamento abortivo na urina . Contraprova feita pelo Instituto de Criminalistica Carlos Eboli, que ficou pronta a toque de caixa, originou laudo que deu positivo éara 'plantas abortivas". O instituto reconheceu que a técnica utilizada no exame não teria sido suficiente para indicar se outra substância ou medicamento abortivo poderia estar presente na urina coletada para exame. Pesquisas mostram aumento da violência durante a gestação. A Comissão de Cidadania e produção apoiou estudos que analisas julgados pelos tribunais de justiça de todo os Estados, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e pelo Supremo Tribunal Federal (STF), entre 2001 e 2006. Constataram que 31% das ações judiciais que tratam de aborto no Brasil referem-se a interrupções de gravidez causadas por violência contra gestantes. As razões variavam da indignação de um ex-namorado, por exemplo, por não conseguir reatar o relacionamento, até o cálculo frio de quem mata a ex-mulher grávida por estar em outro relacionamento. Do total de processos vinculando aborto à violência, 67% eram da Região Sudeste, 20% do Sul, 7% do Centro Oeste, 4% do Nordeste e 2% do Norte, revelando que o acesso ao Judiciário se dá com maior incidência nos estados mais desenvolvidos . O caso de Bruno e Eliza aponta para outros aspectos, tais como a existência e mau uso do misoprostol no Brasil, embora não tenha ficado claro se a jovem fez realmente uso do medicamento. No depoimento ao médico-legista, também segundo a polícia, ela afirmara ter ingerido cerca de dez comprimidos, alguns azuis e outros cor-de-rosa. De acordo com reportagem publicada em jornal nacional, a contraprova do laudo indicou a presença da substância piperidina. Os dados indicam que Eliza poderia ter ingerido algum tipo de chá abortivo. O fato é que não existem chás comprovadamente abortivos e, por outro lado, o misoprostol, quando devidamente utilizado, é altamente eficaz. Essas informações são de conhecimento geral da comunidade científica, apoiadas pela Organização Mundial de Saúde e reconhecidas pelo Ministério da Saúde, que incluiu o medicamento em sua lista básica. Estamos longe, contudo, de fornecer às mulheres informações corretas sobre o uso desse medicamento como já ocorre em outros países. Há regulamentações do Ministério da Saúde, produzidas no âmbito da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que permitem apenas o uso obstétrico e hospitalar do medicamento. Isso empurra as mulheres para uma situação de consumo em contextos de vulnerabilidade, já que a regulamentação precisa ser revisada em nosso país. Enquanto isso, tentativas de abortamento poderão ser mal realizadas e terminarão gerando ônus enorme para os cofres públicos, ou seguirem como gestações indesejadas, podendo conduzir a relações violentas . Já há em nosso país evidências suficientes para mostrar que as mulheres precisam do aborto legalizado e, assim como dispõe nossa Constituição, ter acesso a todo progresso cientifico realizado. O acesso ao misoprostol é um deles. A legislação atual, que apenas contempla o aborto em casos de risco de vida da mãe ou quando a gravidez é resultado de estupro, já se mostrou mais do que caduca, não havendo mais sentido a sua permanência no Código Penal, datado de 1940, e totalmente inútil como mecanismo de barreira para a ação ética, moral e cotidiana das mulheres que abortam com ou sem lei, pagando muitas vezes com a morte por suas decisões sexuais reprodutivas.


Fonte: Correio Braziliense - Edição do dia 2/8/2010